Foto: Belenenses Ilustrado
Apresentamos o artigo do jornal A Bola que saiu na edição escrita de 31 Julho de 2013.
Sebastião Lucas da Fonseca, mais conhecido como Matateu, deixou Moçambique rumo a Portugal em Setembro de 1951, há cerca de 62 anos. Tinha então 24 anos. Ia em busca de um sonho. Queria vingar no mundo do futebol e fê-lo ao serviço do Belenenses. Do seu primeiro casamento teve uma filha, Argentina Fonseca, que há dez anos se mantém a trabalhar no museu do clube da Cruz de Cristo, onde o pai se encontra eternizado.
E começa cedo o dia de Argentina Fonseca no Museu do Belenenses. A Sala de Troféus Manuel Bulhosa já não é só uma sala. Há agora mais de dez mil taças expostas em dois pisos do Estádio do Restelo. O espaço guarda um valioso espólio, um autêntico tesouro azul: As taças das várias modalidades, entre o futebol, futsal, atletismo, ciclismo (já extinto), natação, basquetebol, hóquei em patins e outros, retratos de todos os presidentes que passaram pelo Belenenses e memórias de jogadores emblemáticos. É o caso de José Manuel Soares «Pepe» e do pai de Argentina, do qual se podem ver as botas por ele utilizadas, que a filha conseguiu trazer da sua casa no Canadá após a sua morte, ou a camisola usada pelo craque, nascido em Moçambique, ao serviço da Seleção Nacional.
Se no piso térreo, os visitantes são brindados com uma imensidão de troféus e galhardetes com história, no primeiro piso é possível ver uma panóplia de salvas de títulos conseguidos. Uma luxuosa vista sobre o Estádio do Restelo remata a visita a este museu, que outrora foi guardado por Ana Linheiro, antiga atleta do clube que Argentina recorda com carinho: «É uma grande honra continuar o trabalho dela. Sem ela isto não seria possível. Foi uma pessoa muito dedicada».
Obviamente orgulhosa, a filha deste grande avançado também não esconde o amor pelo pai.
«É uma honra ser filha de quem sou», aponta, sublinhando que só lhe falta uma coisa: conhecer Moçambique, a terra onde o pai nasceu e onde tem família.
«Ainda tenho lá raízes, tenho os meus tios e os meus primos, que ainda não conheço. Só conheço o Vicente [tio, antigo joga dor do Belenenses]. Tivemos um convite do Presidente [Armando Guebuza] para ir a Moçambique com outras figuras do futebol, como o Eusébio, mas o Vicente estava adoentado. Mas um dia mais tarde ainda vou conhecer a terra onde o meu pai nasceu», frisa.
Apesar de nunca ter conhecido Moçambique, Argentina teve uma boa oportunidade para o fazer. Quando o pai foi viver para o Canadá. Argentina foi para Luanda com a mãe. «O meu pai dizia-me: “Argentina, já que estás em Angola, podes dar um saltinho a Moçambique. Mas infelizmente nunca consegui ir», recorda.
Um nome cheio de história.
O museu que Argentina agora guarda está repleto de troféus e não só. Há também um arquivo histórico, no qual se incluem edições antigas do nosso jornal, que, diz a filha de Matateu, a apadrinhou. A 28 de Novembro de 1954, Matateu completava a sexta internacionalização por Portugal num amigável, no Jamor, precisamente contra a Argentina, do qual a Seleção saiu derrotada por 3-1.
«Ao intervalo, anunciaram o meu nascimento e no final do jogo os jornalistas de A BOLA disseram que era giro dar-me o nome de Argentina. Vocês são os culpados», brinca. Nesse jogo, José Travassos marcou o golo português, tendo Matateu participado no lance do tento luso.
Argentina cresceu a ver o pai jogar e a respirar futebol. De tal forma que, com seis meses de idade, vivia com os pais numa pequena casa cedida pelo Belenenses, nas imediações do Estádio do Restelo. Umas das muitas curiosidades que confessou a A BOLA.
Matateu queria um rapaz.
«Comecei a ver o meu pai jogar com seis anos. Adorava vê-lo, bem como ao meu tio [Vicente Lucas], o homem que não quis ser Matateu II», aponta, reportando-se aos tempos em que o Estádio do Restelo estava «completamente cheio». Lembra-se muito bem das idas ao estádio com a mãe, para ver o pai jogar, com amigos e até com «alguns jogadores, quando não estavam de serviço». «O meu pai levava me sempre com ele para estar com os amigos e eu privava muito com eles... Porque ele queria que eu fosse um rapaz, para ter continuidade [no futebol], mas naquela altura não havia futebol feminino», diz.
Depois, o pai foi jogar para o Canadá e Argentina partiu para Angola. «Mas sempre mantivemos contacto. Nunca deixámos de nos falar.»
Argentina continuará, por tudo o que para ela significa, a guardar as relíquias do pai no museu do Belenenses: «Serei azul sempre, até morrer. Nasci aqui e cá estou».
O trabalho, esse, não a assusta: «É um trabalho contínuo. Temos um ano para limpar as nossas meninas [taças], como lhes chamamos. Mas é algo que faço com um grande prazer.»
Só espera que os sócios gostem do espaço tanto como ela, porque «esta casa é deles, para que possam visitá-la sempre».
À espera de mais troféus.
O trabalho neste museu não pára e Argentina já fala no alargamento, uma vez que não há espaço para todas as taças estarem expostas. Ainda assim, a filha de Matateu acredita, «sem dúvida», que o atual treinador da equipa principal de futebol, Mitchell Van der Gaag, ainda vai trazer mais troféus e dar mais alegrias aos adeptos do Belenenses, não fosse também ele o ator principal da subida da equipa à Liga este ano.
«Sem desprestigiar outras pessoas que passaram por cá, acho que é um grande treinador. Pegou num futebol desmotivado e formou uma equipa muito jovem e coesa. Era muito difícil para qualquer treinador fazer o que ele fez», frisa a adepta belenense, que só pede ao holandês que faça regressar o clube ao «lugar de direito». «Pode não ser para já, mas havemos de voltar a estar entre o terceiro e o quarto lugar. Antigamente era assim e por este caminho podemos voltar lá.»
«Hoje o futebol é como uma indústria».
Na altura de Matateu jogava-se por amor à camisola, recorda a filha Matateu tornou-se grande. Jogador de eleição. Temido, amado. Um símbolo.
Nas épocas de 1952/1953 e de 1954/1955 foi o melhor marcador do campeonato português (com 29 e 32 golos respetivamente). Esteve no clube do Restelo durante 14 anos, algo quase impossível nos tempos que correm. Também por isso, a filha Argentina tem uma palavra a dizer sobre como se jogava antigamente e jogo está o futebol hoje em dia.
«Na altura do meu pai jogava-se de forma diferente. Havia o tal amor à camisola. Hoje, o futebol é como uma indústria», aponta, sublinhando, contudo, que «ninguém sai desprestigiado». «O meu pai teve o tempo dele, jogou conforme quis e como devia de jogar. Hoje em dia pensa-se mais no dinheiro.»
Depois de mais de uma década ao serviço do Belenenses, Matateu esteve três anos no Atlético, passando depois pelo Gouveia e pelo Amora.
Em 1970 foi para o Canadá, regressou a Portugal e terminou a carreira naquele país (1974). De onde não saiu mais, tendo-se radicado na cidade de Vitória.
Matateu era como um pai para Eusébio.
Argentina diz que o pai contava como os dois jogavam futebol juntos, na rua, em Moçambique.
Matateu nasceu a 26 de julho de 1927. Quinze anos distam o seu nascimento do de Eusébio, outra das glórias do futebol luso-moçambicano, nascido a 25 de Janeiro de 1942. Ainda assim, segundo conta Argentina, relembrando as memórias do pai, ambos jogavam juntos nas ruas da antiga Lourenço Marques, atual Maputo, antes de Matateu trocar a terra natal por Portugal.
«Eles gostavam muito um do outro. O Eusébio chamava Matateu de pai», diz a filha do craque, que lembra que infelizmente os dois nunca chegaram a jogar pela mesma equipa. «Já imaginou se isso tivesse acontecido?», questiona-se. Certamente seriam imbatíveis.
Argentina ainda fez atletismo e dança.
Filha de Matateu não lhe seguiu os passos no futebol mas também foi mulher de desporto
Aos 59 anos, Argentina apresenta-se como uma mulher cheia de vida. Elegante e delicada, sempre com uma palavra amiga. Não jogou futebol na sua juventude, mas ainda assim fez desporto e fê-lo também pelo Belenenses.
«Ainda fiz atletismo, nos anos 70, e tive como professores o doutor Matos Fernandes e Rui Mingas [n. d. r. ex-ministro angolano do Desporto e antigo embaixador de Angola em Portugal]», recorda Argentina, adiantando que fez lançamento do dardo, do peso e do martelo. «Mas não tive lá muita sorte», confessa, em tom de brincadeira. A filha de Matateu destaca-se, contudo, por ser multifacetada. Durante a sua vida, ainda foi professora de dança, nomeadamente de ballet. Uma das suas paixões.
Por Ana Rita Justa, in jornal A Bola
08:48
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